sexta-feira, janeiro 13, 2017

Olho mágico 2


O texto da minha linda colaboradora Luciana Praxedes publicado ontem me inspirou a contar o outro lado da história. E o texto que saiu foi este:

(ou... Por que a grama do vizinho é sempre mais verde??) 

A rotina do café da manhã dela era preguiçosa. Ele sempre acordava antes. Como ela precisava tomar o remédio do hipotireoidismo, esperava meia hora antes de comer. Nesse meio tempo, ele se adiantava e deixava tudo pronto. Era uma maneira de “se mostrar”: “olha que ótimo marido eu sou! Até deixo o café da manhã dela preparado todas as manhãs”. Era o que ele sempre repetia para os amigos do clube. Ela estava cansada daquele mimo todo. Por exemplo: ela preferia leite desnatado, mas ele insistia que o integral era melhor para a saúde. E ai dela se reclamasse. Nesses casos, ele nunca discutia. Apenas emburrava e se fechava em seu mundinho, onde ninguém tinha permissão de entrar. Ela simplesmente não suportava o silêncio dele.

Feliz mesmo era a moça solteira do apartamento ao lado, que ela sempre observava pelo olho mágico. Saia toda produzida e perfumada para o trabalho, todas as manhãs. Certamente deveria ter um cargo bem alto, pois ela sabia reconhecer suas bolsas de grife e seus óculos de sol que com certeza não vinham de um camelô... E na casa dela não tinha aquele silêncio mortal. Lá sempre rolava uma música tocando baixinho. Um jazz, uma bossa nova, uma MPB, tudo de bom gosto. O marido dela não curtia música. Preferia ver notícias ou esportes na TV.

Isso sem falar no carinho que aquele gatinho fofo tinha pela vizinha. Ela sempre amou os animais de estimação. Sobretudo os gatos. Mas o marido dizia que eram animais traiçoeiros e ainda por cima tinha alergia. Ou seja, ela jamais pode ter um gatinho no apartamento. A vizinha, no entanto, tinha sempre a companhia daquele animalzinho fofo, que nunca reclamava de nada, fazia as necessidades no lugar certo e estava sempre pronto a um afago, um cafuné.

Todos os dias, depois do café da manhã, o marido a pegava pela mão e levava para a mesa do escritório, onde tinham que conferir uma a uma todas as notas fiscais do dia anterior. Ela era obrigada a justificar cada centavo gasto e era o momento do dia de que ela menos gostava. Era uma verdadeira tortura. O marido, Capricórnio com ascendente em Touro, não aceitava nenhum gasto que não fosse planejado antes. Ela ainda tinha bem vivo na memória aquele scapin vermelho, que ela decidiu comprar num impulso, quando viu na liquidação, apostando que o marido ia achar sexy. Não teve choro nem vela. Ela precisou devolver com uma desculpa esfarrapada qualquer, e pegar o dinheiro de volta.

Mas o que mais a irritava era aquela xícara lilás, que era para ter sido da mãe dele. Tinha sido comprada por ele em Paris, para dar de presente à sogra, quando ainda estavam bem de vida. Porém, ao chegarem ao Brasil, a mãe dele teve um infarto fulminante e morreu. Ele achou por bem dar à esposa a tal caneca lilás. Se ela pudesse escolher, não usaria aquela triste xícara. Mas discordar do marido era ter de conviver com o homem emburrado. Então, ela achava melhor aquiescer.

Feliz era a vizinha. Que podia escolher a xícara que quisesse, sair e voltar no horário que bem entendesse, ouvir a música que escolhesse, na hora em que estivesse a fim. Sim... a liberdade não tem preço, pensava ela, enquanto lavava a louça e lembrava daquele lindo scarpin vermelho... 


quinta-feira, janeiro 12, 2017

Olho mágico


Mais uma vez tenho a honra de publicar o primeiro texto de 2017, de autoria inspirada da minha querida amiga Luciana Praxedes. 

Por aquele pequeno orifício, ela passou a observar uma vida que não era a dela, mas que desejava imensamente que fosse. A dinâmica daquele casal, meramente comum, igual a tantos outros, era a declaração mais latente de que a felicidade acontece em gestos singelos ou no silêncio de um olhar. Não há palavras, sentenças ou conversas matinais. Apenas uma rotina permeada pelo amor, pela reciprocidade, pelo bem-querer.

Espreitar a dinâmica daquele casal passou a ser o esporte favorito daquela mulher balzaquiana, uma típica leonina com ascendente em Escorpião e lua em Câncer. Ela prestava atenção aos detalhes que a pressa, a  confusão do cotidiano, insistem em camuflar. Todos os dias aquele moço alto de cabelos levemente grisalhos acordava mais cedo para preparar o café ao mesmo tempo em que folheava a página de Esportes de um jornal qualquer. Era uma ação cotidiana, quase automática, mas que revelava uma gentiliza sutil: o café pronto, quentinho, era despejado na xícara lilás, acompanhada de duas fatias de pão integral com manteiga sem sal. E uma fruta! Sim, a fruta dela delicadamente cortada em cubinhos simétricos.

Pontualmente às 7h12 a dona deste desjejum aproximava-se, sentava na cadeira posicionada na cabeceira da mesa e lançava um olhar preguiçoso para ele, que interpretava este gesto como um obrigada. Ao devolver o olhar ele também respondia: de nada, coma tudo. Esta cena trivial enchia o coração da observadora, que pulava o café da manhã por preguiça de prepará-lo. Morar sozinha tem lá suas vantagens, mas a principal desvantagem é não ter ninguém para fazer o seu café da manhã. Nem sempre foi assim, mas ao perceber que preferia um amor amigo ao sexo quente eliminou o desjejum dos seus hábitos alimentares.

O homem enche mais uma xícara de café e senta-se ao lado dela. Coloca sua mão na coxa direita da moça e morde o pão pulmann besuntado de geléia de amora. Ela retribui o carinho e repousa sua mão em cima da dele. Eles se olham. Não emitem nenhum som, nenhuma palavra. Não que fossem necessárias. Neste momento, uma lágrima escorre pelo rosto daquela que permanecia à espreita. Desejou, com toda a força do seu ser, que alguém segurasse em sua mão, que alguém se importasse. Leonel, seu gato siamês, ao perceber que ela chorava, enrosca-se em suas pernas para provar que ela não está sozinha. Tem ele.

O casal, agora de mãos dadas, levanta-se em direção ao quarto. Ao se afastarem da mulher que tudo vê deixam um rastro de dor por tudo aquilo que aconteceu e, especialmente, pelo o que não aconteceu. Fora do alcance dos seus olhos, aquele casal faz ela recordar de um verso sobre o amor. Ou seria sobre a ausência? Não importa. O amor mora do outro lado, no apartamento vizinho, na cozinha, no café quente na xícara lilás.



Luciana Praxedes

Santos, 11 de janeiro de 2017.